Panorama Zoológico

Papel foi sempre uma prisão para mim. Quatro paredes, certo? Das quais as idéias tentam escapar constantemente. O que são parênteses, senão rotas de fuga para as idéias? O que são notas de rodapé, senão idéias abandonando o navio? A perversidade de suas paredes não diz respeito à eventual clausura criada, mas sim à linearidade imposta como via de regra por sua estrutura. Entre os dois reis e os dois labirintos de Borges, fico definitivamente com o segundo, dono de um labirinto insolúvel, construído exatamente ao centro do deserto sem uma parede sequer. A mimese de liberdade é a pior prisão que pode existir. Os primeiros cárceres livres apareceram em um jardim zoológico nos arredores de Hamburgo em 1907. A separação dos animais não era mais feita por jaulas ou cercas e sim por moitas, matas e rochas. O projeto paisagístico, minuciosamente arquitetado, era o que garantia a coexistência dos diferentes mundos animais em uma ilusão verossímil de paz e liberdade. Verossímil a quê e a quem, já que a natureza nesse caso era mímica dela mesma? A idéia de verossimilhança foi imediatamente aniquilada por uma coincidência que agora era completa. Não são mais os níveis de fidelidade da encenação que estão em jogo, mas a intenção dessa duplicação.

É por essas e outras que dediquei os últimos cinquenta e quatro anos da minha vida tentando levitar sobre essas mesmas moitas, matas e rochas, para olhá-las de cima. Passei grande parte desse tempo esquadrinhando a planta baixa da estrutura não-linear do pensamento humano e por ironia do destino, na maioria das vezes debruçado sobre uma folha de papel. Tentei extrapolar o que seria a vista de topo dessa arquitetura que só a visão de Deus tem acesso. Mas é justamente por não existir, que Deus é o único a ver suas retas paralelas. Esse pensamento me confortava nos momentos difíceis. A mim, restava a perspectiva resultante do meu corpo. Somado a ela, a linguagem servia como um equilíbrio de forças. O que é o uso da linguagem senão a prática da arte do desaparecimento? Ao longo da minha carreira a utilizei como o revés da prótese: não como extensão, mas como retirada do corpo. É ela que me permite sumir por detrás de um corpo tamanho 12pt; é ela que permite substituir a fisicalidade de tudo que me está longe, pelo som de seus nomes; e finalmente é ela que permitirá substituir minha derradeira presença, pelo corpo do meu trabalho.

Obviamente como em qualquer truque, a ilusão do desaparecimento funciona das duas, uma: ou através da sensação de que algo estava presente momentos antes, ou através da sensação de ausência em um momento posterior—jamais as duas hipóteses juntas. Todos nós sabemos que nunca estamos presentes uns aos outros. “Tempo real” é mais um dos nomes pelo qual a ilusão de liberdade atende, e “agora” não passa de uma fabricação cognitiva. Se sempre vemos o sol com 8 minutos de atraso, que é o tempo que demora para sua luz chegar até aqui; se quando olhamos a Lua, vemos sua face 1,2 segundos passado a dentro; e se quando olhamos para sala a nossa volta, vemos tudo como era a 1 bilionésimo de segundo atrás; por que tamanha supresa quando algo desaparece no ponto-cego que convencionamos chamar de “presente”? A ilusão de que podemos escapar a condição corpórea através da linguagem é a sutileza cruel que a aproxima das estratégias de controle do zoológico de Hamburgo. Como colocou brilhantemente Francis Wolff, a linguagem é uma jaula transparente na qual tudo se encontra do lado de fora e apenas cada um de nós no lado de dentro. O requinte de crueldade reside no fato de que é ela, a linguagem, que nos permite ter consciência de si e, imediatamente no instante seguinte, passar a atribuir a nós mesmos “nossa própria” consciência do mundo. Não conseguimos pensar nada que esteja fora do escopo normativo da nossa língua ou dos nossos sentidos, portanto sejamos bem-vindos ao panorama zoológico.

Em 1903, o aceleracionismo descrito por Konstantin Tsiolkovsky no princípio do foguete foi a essencial contribuição matemática responsável por tirar, anos mais tarde, o homem do campo gravitacional da Terra. Será que podemos acelerar o homem suficientemente a ponto de liberá-lo de sua própria pele? Em 2011, Diego Hypólito cravou um Flic-Flac sem as mãos, seguido de um Duplo Twist Carpado na copa do mundo de ginástica em Ghent na Bélgica. Assistindo ao video em câmera lenta, tem-se a sensação de que ele seria o primeiro a conseguir a proeza de escapar a própria órbita. Em 1992, os movimentos do ator e mestre em artes marciais Daniel Pesina foram capturados em estúdio para dar vida ao personagem de videogame Sub-Zero da franquia Mortal Kombat. No jogo, sua principal arma é habilidade de congelar seus oponentes. Em um de seus golpes, Pesina dá um mortal para trás, deixando uma escultura de gelo no formato e posição que seu corpo ocupava instantes antes da cambalhota, como uma espécie de armadilha para seu adversário. O ninja, então, espreita por de trás da réplica transparente de seu corpo, a espera que o outro lutador entre em contato com a escultura, tendo o seu próprio corpo congelado. Virtual e hipoteticamente recentes avanços foram feitos na direção do não-humano. No campo da Física, cientistas têm admitido a “incompletude empírica” de seu conhecimento, junto às limitações ontológicas de seus instrumentos de medida. No campo da filosofia, a fenomenologia foi substituída pela especulação de uma realidade nôumenal que foge a realidade de nossos sentidos. E no campo da computação, que é o que me diz respeito, estamos ainda trabalhando para reparar os erros cometidos desde a invenção da internet em 1989.

Sempre achei que o computador pudesse mais do que simplesmente reproduzir virtualmente nosso mundo. Era a oportunidade de conseguirmos escapar os limites do corpo e desenvolvermos uma ferramenta que finalmente desse conta de como nosso pensamento funciona, certo? Mas o que é que seus desenvolvedores, meus ex-colegas, fizeram a não ser reproduzir, não só as coisas boas, mas também as mesmas limitações a que estamos submetidos no mundo real? É natural que o virtual nos deixe órfãos do analógico, mas aparentemente, por nostalgia ou por revolta, nos recusamos a desapegar totalmente. Os celulares no Japão são obrigados a reproduzir o barulho do obturador toda vez que alguém tira uma foto por questões de privacidade, para inibir que maníacos apontem seus celulares por debaixo das saias das mulheres. O fato de ainda usarmos “arquivos”, “pastas” e “páginas” para ordenar conteúdo virtual se assemelha mais ao caso das primeiras carruagens a vapor sem cavalos, que ainda traziam o compartimento do chicote para que seus condutores se sentissem em total controle. Assim, volto ao começo desse email para falar novamente dos limites do papel. Desde que comecei a desenvolver a idéia do hipertexto em meados dos anos 60, sempre foi claro para mim que qualquer tipo de informação não deveria ser veiculada de maneira linear. Afinal de contas, por que decapitar quatro cabeças, de uma ideia que nasceu com cinco? Meu principal desafio tem sido ao longo de todos esses anos o de aperfeiçoar o software que comecei a esboçar naquela época, a ponto de propiciar múltiplas opções narrativas ao leitor através de paralelismos, sobreposições e transclusões. Hoje com meus setenta e um anos recém completados, o projeto Xanadu é uma realidade e sua versão beta pra Windows foi lançada esse ano. Em cada quadro, o leitor tem a liberdade de traçar seu próprio caminho em meio às referências, associações e sugestões contidas. Xanadu é apenas o plano de fundo que permite qualquer leitor editar e escrever sua própria versão da história.

No que diz respeito a sua pergunta no email anterior, ainda tenho que pensar um pouco mais para lhe dar uma resposta satisfatória. É verdade, como você bem colocou, que tanto o ato de ler como o de escrever, um livro por exemplo, necessariamente acontece escaneando ou redigindo letra por letra, palavra por palavra, página por página, mesmo que estas páginas não estejam encadernadas em uma ordem específica, por assim dizer. Se eu bem entendi sua colocação, ler e escrever, assim como assistir e ouvir, são ações que se desdobram no tempo e é justamente essa temporalidade que colocaria qualquer ordem não-linear de volta em uma timeline sequencial. Agora sou eu quem lhe pergunto: seria o tempo o único responsável pela geração espontânea de narrativas? Edward Harrison já nos deu a dica ao dizer que ser humano é o que acontece com Hidrogênio se você esperar tempo suficiente…

atenciosamente,
Ted Nelson

(Texto escrito na ocasião da exposição UUUUU, Portas Vilaseca Galeria, 2015)